Culpa materna: a descoberta da diabetes do meu filho

Eu poderia começar este texto dizendo que a culpa não é minha. Poderia, mas estaria mentindo. Não porque ela seja, de fato, minha, mas porque ser mãe é carregar esse “e se?” tatuado na alma, do tipo que não some nem com laser, base de blogueira ou psicólogo bom. Culpa materna, já ouviu falar?

A descoberta da diabetes do meu filho não veio com avisos sonoros nem com cenas dramáticas de dorama. Veio como muitas coisas chegam na vida: disfarçada de rotina. Dor de cabeça, dor de garganta e alguns espisódios de vômito: “Virose!”, pensei. Ele está bebendo muita água – é claro que é o calor de Recife! Para a perda de peso, a maior justificativa: você viu o tanto que esse menino cresceu de dezembro pra cá?

E eis aí minha culpa: eu não juntei os pauzinhos para ver que o que meu filho tinha era diabetes tipo 1.

O susto do diagnóstico e a médica-anjo

Anjos existem, mas alguns usam jaleco branco. No nosso caminho, o anjo se apresentou na madrugada do dia 30 de março no plantão da emergência pediátrica como Dra. Lidiane Rosaly.

Luca chegou à emergência com sintomas que, para mim, ainda podiam ser aquelas coisas que falei lá em cima. Dra. Lidiane não teve dúvidas: pediu o teste de glicose imediatamente e, com o resultado em mãos, foi direta. Era diabetes. Eu, mergulhada na negação (e armada com o diploma em medicina que adquiri assistindo série de hospital) ainda quis acreditar que podia ser um erro, uma reação ao que ele comeu, algo simples. Ela não arredou o pé: não era outra coisa.

Mesmo assim, em algum lugar da minha cabeça, eu achava que um remedinho resolveria tudo. Mas Luca ficou em observação, recebeu as primeiras doses de insulina, levou picadas em intervalos curtos, e eu e Rodrigo começamos a entender, aos poucos, que não era só um susto.

Enquanto isso, um segundo problema crescia: o plano de saúde não autorizava a consulta. Estávamos ali pagando particular sem termos condições para isso. E foi aí que a médica virou anjo (mais uma vez). Foi ela quem, diante da situação, conseguiu a ficha para um dos hospitais públicos mais conceituados da cidade, além de providenciar a ambulância para fazer a transferência.

“Nós vamos sorrir, sim. Sorriam.” Primeiros dias no hospital, Luca com o lanche que recebia, eu jantando o resto de um sanduíche que tinha comprado na lanchonete do hospital para almoçar.

A montanha-russa na ambulância e nas emoções

Luca foi transferido ainda com as taxas de glicose altas. No caminho, eu decidi vestir minha fantasia da leveza. Enquanto meu sangue gelava por dentro, por fora eu era só sorriso e piada, em um faz-de-conta em que o trajeto na ambulância se transformava em uma montanha-russa divertida igual às do Beto Carrero. Porque ele precisava de calma, eu precisava que ele não tivesse medo. No fundo, no fundo, eu estava apavorada.

Chegamos ao hospital público na manhã do domingo depois de uma noite em claro. Fomos muito bem recebidos por todos os profissionais: médicos, enfermeiros, técnicos. Mas, entre medidores de glicose e frascos de insulina, o que também nos saltava aos olhos eram as outras mães, outros pais, outras crianças dividindo espaço e histórias. A precariedade da estrutura, o improviso nas condições, o olhar cansado das famílias (especialmente das mães, que eram maioria como acompanhantes das crianças)… tudo aquilo nos atravessou. Eu e Luca choramos.

Foi um choque de realidade. E junto dele, mais uma pontada daquela culpa muda, que chega sem bater. A culpa de não ter percebido antes. A culpa de ter deixado a glicose subir tanto. A culpa de estar naquele hospital, com meu filho doente, sem poder oferecer um ambiente melhor para ele, fingindo bravura, enquanto tudo o que eu queria era deitar na minha cama e chorar.

Gratidão com gosto de dor

Na UTI do hospital público, Luca também foi muito bem tratado. Havia atenção constante, profissionais atentos, enfermeiros que passavam de tempos em tempos para verificar tudo. Ele estava seguro. Mas, para mim e para Rodrigo, o cenário era outro – mais humano e mais exaustivo.

A cadeira de ferro do acompanhante era quase um castigo. Não havia uma posição que permitisse dormir, descansar ou simplesmente existir sem dor nas costas. O banheiro compartilhado tinha um cheiro forte de urina e era ali que eu dava banho em Luca, mandando ele se equilibrar na chinela para que não encostasse no chão. O banheiro que eu podia usar ficava num corredor distante, o que significava cruzar áreas carregando o peso do cansaço.

Tentando dormir em uma cadeira de ferro, em uma sala gelada, com as pernas em cima da cama de Luca. Ele jogava as pernas dele por cima das minhas e me aquecia um pouco.

Mesmo assim, eu era grata. Grata por ele estar recebendo o tratamento que precisava. Grata pela vaga que conseguimos. E, principalmente, grata por perceber que a nossa situação não era tão difícil assim. Compartilhando a UTI com Luca, havia duas meninas em tratamento dos rins e passando por sessões de hemodiálise. Estavam ali há vinte, trinta dias. Com elas, suas mães notadamente exaustas, seus corpos já acostumados à dureza de dormir nas incômodas cadeiras. Dor não se compara, mas diante do delas, meu perrengue era uma nuvem.

E ainda assim, eu queria chorar. Chorar por ver meu filho ali, frágil, lidando com uma nova realidade. Chorar por mim também. Porque, apesar da força que eu fingia, do humor que eu forçava, do controle que eu simulava, havia um medo enorme me consumindo.

Depois que ele saiu da UTI e o plano de saúde enfim resolveu funcionar, transferimos Luca para um hospital particular, onde ele deu continuidade ao tratamento. Ao todo, foram dez dias – daquela madrugada do dia 30 de março até a alta. Dez dias em que o tempo parou e ao mesmo tempo passou correndo.

Luz na culpa, voz no silêncio

Agora, com Luca em casa, em meio às agulhas, medidores de glicose e insulina, estamos aprendendo sobre uma nova realidade. E para falar sobre essa realidade da diabetes, eu decidi escrever. Porque se tem uma coisa que a culpa não gosta é de luz. Ela se alimenta do silêncio, da vergonha disfarçada de responsabilidade. Mas quando a gente fala, escreve, compartilha, ela começa a encolher.

Assim como compartilhei, há 11 anos, sobre o descolamento do saco gestacional, sinto que este relato também pode acolher e ajudar outras mães. Não apenas aquelas que vivem a rotina com a diabetes tipo 1, mas todas que já sentiram o peso silencioso da culpa materna – porque a verdade é que ela não escolhe doença, transtorno ou condição. A culpa é democrática e, na maioria das vezes, cruel.

Este texto não é um pedido de desculpas. É um manifesto por todas as mães que já acharam que erraram quando, na verdade, estavam apenas vivendo. E vivendo, às vezes, significa lidar com o imprevisto, com o que escapa mesmo quando a gente tenta segurar.

Quando o amor é maior que o medo

A culpa ainda aparece. Em doses menores, é verdade. Mas aparece. E tudo bem. Porque agora eu olho para ela, dou um café, escuto o que tem pra dizer… e sigo. Com Luca aqui juntinho. Com as agulhas, os medos e os aprendizados.

Ser mãe é amar com força. E é desse amor que vem a coragem de continuar, de melhorar, de cuidar, de falar. E de escrever.

Meu filho é diabético. E vai ficar tudo bem!

Comentários do Facebook
Compartilhe:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *