Blogueiras X UGC: o que mudou na relação entre criadores de conteúdo e marcas

Ao longo das duas últimas décadas, o cenário digital passou por transformações profundas. A chegada de novas plataformas e o surgimento de novos tipos de criadores de conteúdo redefiniram a maneira como marcas e influenciadores se conectam. Entre essas mudanças, dá para perceber um contraste gritante entre as blogueiras “das antigas”, que lutaram por reconhecimento e profissionalização, e os perfis de UGC, que muitas vezes aceitam trabalhar em troca de produtos ou por valores bem abaixo do mercado.

Para quem viveu o nascimento e a evolução dessa relação entre marcas e criadores de conteúdo, a sensação de que o trabalho duro de anos pode estar sendo desvalorizado por essa nova onda de criadores é um sentimento comum. Em uma discussão sobre o assunto no app Threads, a influenciadora Nicole Regiane, do Nica por Aí, comentou: “Recebi o briefing de uma empresa buscando influenciadores com mais de um milhão de seguidores para receber produto”. Atuando na criação de conteúdo desde 2012, essa não foi a primeira vez que Nica recebeu uma proposta absurda, mas definitivamente foi uma das que mais a chocou. “Estou fingindo que li errado”, lamenta.

Nicole Regiane é criadora de conteúdo desde 2012.

O surgimento dos perfis UGC e a nova realidade

A explicação por trás da proposta recebida por Nicole não é difícil de entender. Por volta de 2010, quando as primeiras blogueiras começaram a ganhar destaque, criar conteúdo para marcas era uma tarefa solitária e desafiadora. As influenciadoras da época precisavam construir seu espaço sem as ferramentas e o reconhecimento que os usuários reconhecidos nas redes sociais têm hoje. Era necessário não apenas produzir conteúdo relevante, mas também educar as marcas sobre o valor desse trabalho.

Sem saber como de fato funcionava esse relacionamento entre blogs e empresas, o caminho foi sendo construído entre muitos erros e acertos dos dois lados. Os press kits eram o começo de tudo, e o envio de produtos para blogueiras se tornou uma estratégia de muitas marcas para obter divulgação gratuita. No entanto, ficou claro para as criadoras que esse modelo não era sustentável.

As blogueiras passaram a se posicionar, estabelecendo a importância de serem pagas pelo seu trabalho. Não era suficiente receber produtos – afinal, o tempo, a dedicação e o conhecimento que elas aplicavam ao criar conteúdo tinham um valor inegável. Essa luta pelo reconhecimento profissional foi fundamental para que as marcas entendessem o valor dos influenciadores, levando ao surgimento de parcerias pagas, contratos e campanhas de marketing digital.

Com o crescimento das redes sociais e a facilidade de acesso a novas plataformas como Instagram e TikTok, surgiu um novo tipo de criador de conteúdo: o UGC (Conteúdo Criado pelo Usuário, em tradução livre). Ao contrário das blogueiras, que construíram suas audiências e autoridade com muito esforço, os criadores UGC se baseiam em um modelo diferente. Eles geram conteúdo diretamente para as marcas, muitas vezes sem a necessidade de terem uma base sólida de seguidores ou uma presença de longa data na internet.

Em 2023 e 2024, o termo UGC e o trabalho dos criadores que adotaram essa denominação ganharam força no Brasil. Essa popularização, contudo, trouxe consigo um retrocesso preocupante no mercado de influência: o modelo acabou desvalorizando o esforço construído ao longo de mais de uma década, comprometendo o avanço da profissionalização da produção de conteúdo no país.

Mudanças no mercado de criação de conteúdo

Vários fatores explicam essa mudança no comportamento dos criadores de conteúdo:

Saturação do mercado

Hoje em dia, praticamente qualquer pessoa com um celular e acesso à internet pode criar conteúdo (não estamos falando de bom português ou qualidade de fotos e vídeos, ok?). Isso fez com que o número de criadores aumentasse significativamente, o que, por sua vez, reduziu o valor percebido do trabalho de criação, já que há muito mais oferta no mercado.

Urgência por visibilidade

Muitos criadores UGC buscam oportunidades de serem notados pelas marcas, e muitas vezes aceitam produtos ou parcerias sem pagamento em troca da chance de entrar no radar das empresas. O pensamento é de que qualquer visibilidade é boa visibilidade, algo que as blogueiras mais experientes aprenderam a questionar, como Cinthia Ferreira, do Makeup Atelier. “É uma questão de tempo até essas meninas perceberem que a imagem ficará desgastada em pouquíssimo tempo, e a tão sonhada ‘nova profissão’ pode acabar antes mesmo de se consolidar. Quando elas entenderem que a imagem é tudo e que menos exposição, aliada a ganhos maiores, é o verdadeiro segredo, a coisa muda. No final, só permanece quem sabe do game”, diz Cinthia, que está à frente de seu blog desde 2009.

Cinthia cria conteúdo para o Makeup Atelier desde 2009 e também produz conteúdo para seu blog de viagens, canal no YouTube e redes sociais.

Mudança no foco do conteúdo

Enquanto as blogueiras tradicionais construíram suas plataformas com base na criação de uma comunidade e no relacionamento com seu público, muitos perfis UGC estão focados em criar conteúdo que atenda diretamente às necessidades das marcas, com menos preocupação sobre a conexão com os seguidores.

Falta de conhecimento sobre valorização do próprio trabalho

Muitos criadores UGC não entendem o real valor do seu trabalho ou o impacto que o conteúdo orgânico pode ter para uma marca. Essa falta de conhecimento sobre precificação e monetização do conteúdo é um dos maiores desafios.

Sensação de que o trabalho foi em vão

Para as blogueiras que passaram anos educando o mercado sobre a importância de se pagar pelos serviços, ver o aumento de criadores aceitando produtos em troca de trabalho gera uma sensação de frustração. Durante muito tempo, blogueiras foram vistas como pioneiras na forma de criar conteúdo para marcas, estabelecendo um padrão de qualidade e de remuneração justa. Agora, com essa massificação gerada por usuários comuns, as marcas podem se sentir tentadas a voltar a um modelo de trocas sem pagamento, já que existe uma nova leva de criadores dispostos a aceitar as propostas mais ridículas.

Confiança na expertise construída ao longo dos anos

Apesar da frustração com o cenário atual, as blogueiras mais antigas ainda têm algo muito valioso a oferecer: relacionamento com o público e expertise. Criar conteúdo que inspira e constrói confiança leva tempo, algo que nem sempre os criadores UGC conseguem entregar de forma consistente.

Além disso, essas pessoas que passaram anos trabalhando no espaço digital têm uma compreensão mais profunda das necessidades das marcas e das expectativas de seus públicos. Esse conhecimento é algo que continua sendo valioso para as empresas que buscam não apenas conteúdo, mas também influência real e duradoura. Felizmente, muitas marcas têm essa consciência.

Além do horizonte existe o equilíbrio?

Embora o surgimento dos perfis UGC tenha trazido mudanças no mercado, isso não significa que o trabalho das influenciadoras mais antigas foi em vão, prefiro acreditar que ele pavimentou o caminho para que o marketing de influência se tornasse o que é hoje. O desafio agora é encontrar um equilíbrio entre a produção de conteúdo acessível e a valorização adequada do trabalho criativo.

Para as mais experientes, o segredo está em continuar educando o mercado e se diferenciando pelo relacionamento autêntico e pela qualidade do conteúdo. Enquanto isso, para os criadores UGC, o futuro depende de aprender a valorizar seu trabalho, entendendo que a criação de conteúdo vai muito além de uma simples troca de produtos.

No fim das contas, o sucesso de qualquer criador de conteúdo depende de uma coisa: autenticidade.

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